Entrevista ao Observatório da Segurança Pública, Delegado Mario Wagner Formação do Policial Civil e desafios à segurança pública.
Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Cruz Alta (1977). Concluiu o Curso Superior de Formação de Delegado de Polícia na Academia de Polícia Civil (RS) em 1982. Atualmente é Delegado de Polícia, exercendo o cargo de Diretor Geral da Academia de Polícia Civil – ACADEPOL, após ter passado por diversas Delegacias de Polícia do Interior do Estado, e ter exercido a direção da Corregedoria Geral de Polícia.
OSP: Qual é o papel da Acadepol?
R: Compete à Academia de Polícia Civil – ACADEPOL, conforme previsão estatuída no art. 134, parágrafo único, da Constituição Estadual, “O recrutamento, a seleção, a formação, o aperfeiçoamento e a especialização do pessoal da Polícia Civil”.Cabe, assim, à ACADEPOL todo o processo seletivo e de formação dos futuros policiais, nos cargos de Delegado de Polícia, Inspetor de Polícia e Escrivão de Polícia, o que inclui todas as etapas dos concursos (provas de conhecimentos, avaliação da capacidade física, perfil profissiográfico, sindicância da vida pregressa) e os cursos de formação, finalizando com a orientação para o processo de nomeação e posse no cargo. Além dos cursos de formação e de atualização, a ACADEPOL tem ainda a atribuição de produzir conhecimento de interesse policial, ou seja, realizar pesquisas e promover a discussão de todos os temas relativos ao trabalho policial. De acordo com esse objetivo, implantou-se no último curso de formação de delegados a exigência de redação de uma monografia. A formação do policial é sem dúvidas um processo, deve ser amplamente discutido antes de seu início e criteriosamente avaliado ao seu término. Isso implica em inúmeras discussões do conteúdo curricular com o corpo docente, em estabelecer critérios de integração das áreas temáticas que compõem os diversos eixos de aprendizagem, como atingir a formação de conceitos, habilidades e atitudes necessários ao exercício da função policial em toda a sua complexidade. Implica, ainda, em criar mecanismos de avaliação a serem aplicados, tanto dos alunos no aspecto formal, pois o curso integra o concurso como uma de suas etapas, quanto dos professores, para buscar sempre novas alternativas que cada vez mais qualifiquem o processo ensino-aprendizagem.
OSP: Quais são os cursos oferecidos pela ACADEPOL?
Como o curso de formação abrange uma formação genérica, a ACADEPOL promove o aperfeiçoamento dos policiais já em atividade em conhecimentos específicos que se tornam necessários no dia a dia, como a atualização no uso legal e progressivo da força e da arma de fogo, investigação dos crimes praticados pela internet, crimes contra a propriedade imaterial e intelectual, atendimento a grupos vulneráveis (mulheres, crianças e adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais e outros) e novas legislações penais, com tipos e procedimentos penais especiais (Lei Antidrogas, Lei Maria da Penha, modificações dos Códigos Penal e de Processo Penal).
OSP: Quais são os princípios básicos da formação do policial civil?
A formação e atualização do policial civil pela ACADEPOL têm como princípio básico o respeito e garantia dos Direitos Humanos. Foi a primeira instituição de ensino policial a implementar a disciplina de Direitos Humanos em seu currículo, em 1987, que passou a integrar legalmente o conteúdo curricular a partir do ano seguinte, pela Lei nº 8.835, de 22 de fevereiro de 1989. Atualmente, o conceito de Direitos Humanos está incluído como conteúdo transdisciplinar, além de constituir uma disciplina específica. Como curiosidade cumpre acrescer que o primeiro professor e coordenador da disciplina foi Ricardo Brisolla Balestreri, atual Secretário Nacional de Segurança Pública.
OSP: A formação tem impacto na atuação do policial?
A formação policial nas academias de polícia tem profundo impacto na atuação do profissional nesta área tão complexa, a atividade de polícia judiciária, pois é nos estabelecimentos de ensino policial que se começa a forjar sua capacidade de tomada de decisões que envolvem e marcam profundamente as pessoas que sofrem ou presenciam a atuação do profissional de polícia.
É nos estabelecimentos de ensino policial que os alunos aprendem o arcabouço de conhecimentos e técnicas capazes de habilitá-los ao exercício do ofício, cabendo a cada um deles desenvolvê-los no seu cotidiano, assim como buscar novos conhecimentos e habilidades condizentes com as características e ambições pessoais.
O retorno que a ACADEPOL tem recebido dos alunos dos últimos cursos de formação tem demonstrado o alto grau de satisfação com o conteúdo curricular e sua adaptação à realidade que encontraram quando do início da atividade profissional.
OSP: E como a Acadepol contribui para a melhoria da prestação de serviços de polícia?
Sendo a ACADEPOL a porta de entrada e a encarregada do aperfeiçoamento dos integrantes das carreiras policiais do Rio Grande do Sul, tem ela se empenhado para que, pelo menos, 20% de seus servidores tenham possibilidade de alguma atualização a cada ano. Isto tem possibilitado que a Polícia Civil gaúcha tenha recebido o reconhecimento nacional como a melhor polícia civil brasileira, em pesquisa de satisfação levada a efeito pela Universidade de Brasília em 2007, e que uma de suas Delegacias dedicadas ao atendimento da Criança e Adolescente tenha recebido prêmio de nível internacional em 2008.
As taxas de letalidade igualmente são as melhores do ranking nacional. É certo que estes índices são alcançados também pelas características do povo gaúcho, extremamente solidário.
OSP: Existe hoje um currículo nacional para a formação de policial?
O que existe em nível nacional não é propriamente um currículo, e sim orientações quanto ao conteúdo mínimo a ser ministrado nos cursos de formação, e uma sugestão de orientação pedagógica quanto à forma de ministrar os conhecimentos propostos. Resta, porém, autonomia aos Estados para, atendendo às suas características e necessidades próprias, desenvolver o seu currículo e proposta pedagógica.
OSP: Como as Academias estão se integrando no contexto brasileiro atual?
Uma iniciativa da ACADEPOL de Minas Gerais, nos dias 09, 10 e 11 de setembro do ano passado, congregou os diretores das Academias de Polícia Civil do país objetivando a discussão de seus processos de ensino aprendizagem, a integração a nível nacional inclusive com a criação do Conselho Nacional de Educação em Polícia Judiciária-CONEP.
A ACADEPOL/RS tem uma parceria bastante efetiva com sua congênere de Santa Catarina no oferecimento de vagas em cursos de aperfeiçoamento, especialmente quando se trata de conhecimentos específicos para determinadas áreas da atividade policial, como é o caso de crimes praticados pela internet e uso legal e progressivo da força e da arma de fogo, o que proporciona um intercâmbio de conhecimentos e boas práticas.
OSP: Qual é sua opinião sobre a atividade de investigação da polícia civil no RS?
Apesar do acréscimo de novas tecnologias, tais como a interceptação telefônica e a quebra dos diversos sigilos, a investigação continua sempre centrada na capacidade do ser humano de formular hipóteses e de buscar a sua confirmação ou não. Há um ditado bastante antigo, de que “o local de crime é um livro, basta saber lê-lo”, cabendo ao investigador saber ler o livro e interpretá-lo, o que já exige um preparo profissional muito acurado. O local de crime nos dá os vestígios do delito, ao investigador cabe estabelecer a materialidade delitiva, a autoria e as circunstâncias, um conjunto de atividades complexas, envolvendo conhecimentos de áreas tão diversas como Direito, Criminalística, Sociologia, Psicologia, Contabilidade ou Biologia, conforme o tipo específico de crime. Por outro lado a Polícia Civil do Rio Grande do Sul conta com um efetivo igual ou inferior ao de 1980. A demanda de serviços aumentou em proporções quase geométricas e, mesmo assim, se compararmos nossos índices de elucidação, especialmente de crimes contra a vida, estamos muito bem situados no cenário nacional.
OSP: E o que o Sr. pensa sobre o Inquérito Policial?
Concordo plenamente com o grande processualista paulista Tourinho Filho, quando diz que o Inquérito Policial é a forma mais execrável de atividade pré-processual, exceto todas as outras. Em outras palavras, o nosso sistema é ruim? Pode até ser, mas ainda é a forma mais democrática de apuração preparatória para a ação penal, e na visão de Herman Goldstein (Policiando uma sociedade livre) e de Dominique Monjardet (O que faz a polícia), a forma que mais respeita o ser humano como titular de direitos e obrigações, que pode e deve participar efetivamente na reconstrução presente do fato passado com vistas a um julgamento isento e justo no futuro. Se compararmos o nosso Inquérito Policial com das Vorvefahren da Alemanha, a indagini preliminari italiana, ou a enquête préliminaire francesa ou qualquer outro sistema da Europa Continental, claramente se percebe que o Inquérito Policial é a forma mais garantista de todas, e a que tem o maior controle, quer da sociedade, quer da OAB ou do Ministério Público.
A grande discussão do momento no meio jurídico é a possibilidade de início da defesa dentro do Inquérito Policial. Sempre se fala pejorativamente que IP é um instrumento inquisitório, vinculando o vocábulo à inquisição praticada pela Igreja na Idade Média. Realmente, o inquérito é inquisitório pela sua natureza, e face à necessidade urgente da produção da prova, especialmente técnica e de apreensões, sob pena de se perderem. O Inquérito Policial é inquisitório pois quem o preside enfeixa os poderes de produção de prova, o que não quer dizer que tenha que obstaculizar o exercício de todos os meios de defesa disponíveis. Isto já vem escrito no Código de Processo Penal de 1941, quando oferece às partes a oportunidade de requerer diligências, de cuja negativa cabe recurso ao Chefe de Polícia, de formular quesitos até o momento de sua realização; consta ainda no Estatuto da OAB e em outras normas legais. A prática, porém, tem demonstrado a limitação a estes direitos, o que motivou o Supremo Tribunal Federal – STF, a editar a súmula 14, e, por incrível que pareça, criticada por agentes do Ministério Público. Por outro lado, as faculdades de direito também tem descurado da importância do IP, mero procedimento administrativo, olvidando o fato de que nele é que se produz a prova perene (material), e que no processo judicial - este acusatório – em que se produz a prova em frente a um juiz imparcial, meramente se produz a prova oral e a sua discussão. A defesa deve começar no Inquérito Policial.
Há necessidade, porém, da adequação do Inquérito Policial às novas tecnologias, já que o Código de Processo Penal prevê que o Inquérito Policial deverá ser escrito ou datilografado, realidade de 1941, e hoje estão disponíveis tecnologias bem mais sofisticadas que permitem o registro, manutenção e transmissão dos elementos probatórios colhidos para o destinatário final, o Poder Judiciário e o Ministério Público.
Embora hoje se discuta um projeto de reforma do Código de Processo Penal que envolve a discussão das investigações preliminares (Inquérito Policial), não acredito em grandes modificações na sua estrutura e sim meramente na titularidade, hoje exclusividade do Delegado de Polícia, e estabelecimento de um controle mais efetivo por parte do Poder Judiciário.
OSP: E sobre formas de controle interno e externo de polícia?
Quanto ao controle interno da Polícia Civil, me sinto à vontade, por já ter exercido a função de Corregedor Geral, para dizer que as polícias no Brasil não priorizam o controle interno das corporações, com quadros totalmente insuficientes tanto para a correição preventiva quanto repressiva. Nas atividades de correição preventiva há no país excelentes instrumentos normativos internos, que pela carência de difusão e convencimento, levam muito tempo para serem implementados. Fato semelhante acaba acontecendo com a correição repressiva, o que leva as Corregedorias a delegarem as atividades investigatórias de eventuais desvios de conduta a superiores hierárquicos dos infratores, o que muito lhes tira a isenção necessária. Acredito que a constituição de carreira própria, dentro das Polícias Civis, seja a melhor solução. Proporciona a proximidade suficiente para conhecer os meandros da atividade policial e a isenção necessária, pois evita que amanhã o servidor da corregedoria esteja trabalhando lado a lado, ou mesmo subordinado, a alguém que investigou anteriormente.
Entendo, ainda, que o controle externo da atividade policial, além do Ministério Público com atribuição constitucional e das Ouvidorias de Polícia, deveria ser exercido também por um órgão de composição mista, em que tivessem assento, além de policiais, o Ministério Público, a Magistratura, a OAB e a sociedade organizada, a exemplo do que já ocorre nos Conselhos Nacional da Magistratura e Nacional do Ministério Público, e que se fizesse presente nos três níveis da organização do estado: nacional, estadual e municipal, onde houvesse comarcas instaladas.
Quanto ao Inquérito Policial, é um dos instrumentos investigatórios mais controlados de que se tem conhecimento, pois sobre ele exercem o controle o Poder Judiciário, o Ministério Público, a OAB, a Corregedoria Policial, as partes e a sociedade.
OSP: Existem boas práticas em termos de polícia civil no RS?
Vejo como boas práticas em desenvolvimento no Rio Grande do Sul a realização de mutirões cartorários e a intimação via postal. A primeira, em uso há quase uma década, consiste na concentração, em determinada delegacia de polícia, de delegados e agentes, com o encargo de proceder à seleção e ao encaminhamento de inquéritos policiais parados. O delegado não pode arquivá-los, por disposição legal e, frente à carência de efetivo, convidam-se policiais de órgãos menos sobrecarregados para esta finalidade. Isso tem produzido resultados práticos, embora momentâneos enquanto não suprido o quadro funcional, de remessa de grande número de inquéritos ao Poder Judiciário com bom índice de resolução.
A segunda, a utilização dos correios para proceder à intimação das partes a comparecerem às delegacias de polícia, igualmente proporciona uma boa melhoria no serviço, tanto pela economia de tempo, já que não há necessidade de deslocamento de pessoal, quanto financeira, pois o custo da intimação se reduz ao custo da postagem. O resultado tem sido excelente, pois iniciou-se por projeto piloto em duas Delegacias da Capital e hoje está sendo estendido para todo o Estado.
OSP: O que esperar do futuro em termos de Segurança Pública no Brasil?
Enquanto segurança pública for tratada como assunto somente de polícia, não acredito em melhorias. Segurança Pública é, antes de ser um problema policial, um problema social, ou seja, a polícia só deve lidar com os problemas que a sociedade não logrou resolver, e não deve ser o escoadouro de todo tipo de demandas sociais. Há muitas outras agências sociais e instâncias diferentes para a solução, desde a família, escola, sistema de saúde, urbanização, etc.; quando estas agências ou instâncias falham é que proliferam os fatos que são de atribuição da polícia. Dizer-se que o modelo de polícia brasileiro está superado, que não satisfaz à demanda, discutir-se um novo modelo é muito louvável, porém totalmente ineficaz pois, por melhor que seja o possível novo modelo, continuará crescendo o índice de criminalidade. Aumentar penas ou tipificar novas condutas penais continuará sendo a solução simbólica para a omissão do trato sistêmico dos problemas sociais.
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